segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Considerações sobre a Educação Brasileira em 2013 e expectativas para o próximo ano

Neste último post do ano de 2013 gostaria de agradecer ao acesso de todos ao Blog e também àqueles que acompanham nossa Fanpage no Facebook (https://www.facebook.com/ecnaescola) e destacar dois pontos que foram mencionados ou aqui em meus comentários ou estiveram presentes nas notícias em destaque aqui ao lado, na aba direita.
O primeiro diz respeito à opção pelo magistério, às ações relacionadas à formação docente e à responsabilização dos professores pelas mazelas da Educação brasileira. Entendo que estes três aspectos encontram-se completamente imbricados e têm sido foco de um discurso que vem se tornando hegemônico em nossa sociedade, proferido tanto por leigos comuns quanto por leigos que decidem os rumos da Educação de nosso país. Refiro-me à ideia de que professor bom é aquele que "nasceu com o dom", atura qualquer tipo de condição desumana profissional e que foi mal formado e, por isso, o ensino que ele oferece aos seus alunos é de péssima qualidade. Saída imediata? Escolas equipadas com computadores, provas para avaliar o "aprendizado normatizado" dos alunos, currículos mínimos, índices de desenvolvimento da escola com direito a gratificações diretas (no formato de bolsas) aos professores. Minha pergunta leva ao segundo ponto: Afinal, qual a política nacional de Educação brasileira?
Pois bem, venho acompanhando o trâmite do Plano Nacional de Educação que está em um ciclo "iô iô" desde 2010 entre Congresso Nacional e Senado Federal. Não é possível que um país fique anos sem um Plano em vigência. Será que isso não quer dizer nada? Afinal, o ponto que mais gera discórdia no PNE é a quantia (isso mesmo, dinheiro) que será destinado à Educação em seus diferentes níveis. Sinceramente, eu não quero fazer críticas pontuais ao atual Governo porque esta é uma questão histórica, porém não há como fechar os olhos e os ouvidos aos absurdos que o Sr. Ministro da Educação Aloisio Mercadante insiste em dizer por aí.
Não há como falar de Ensino de Ciências sem falar em questões educacionais e políticas mais amplas. Precisamos estar antenados com o que está acontecendo não apenas na nossa área mas em tudo o que tem ocorrido em nosso país e em seus Estados, os quais guardam especificidades impressionantes e, às vezes, inacreditáveis para quem vive na Região Sudeste, meu caso particularmente.
Enfim, espero (não sentada, mas atuando cotidianamente) que o próximo ano seja um ano de avanços para a Educação brasileira. Seja por meio de vias de políticas oficiais, seja pelas vias populares e informais. Os professores, no ano de 2013, deram uma mostra de que não estão "acomodados em suas salas de professores tomando cafezinho" e que querem seriedade já que eles fazem seu trabalho com competência (refiro-me aqui, especificamente, aos professores do Rio de Janeiro que estiveram em greve por meses e lutaram por melhores condições de trabalho em prol de seus alunos).
Que 2014 seja produtivo a todos nós professores e que tenhamos renovada nossa esperança na melhoria da Educação.
Tatiana Galieta. 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Diversidade cultural: a escola e as diferenças

Semana passada estive em uma festa de encerramento de um CIEP no município de São Gonçalo cujo tema era "Diversidade Cultural". Foram apresentados os trabalhos desenvolvidos por professoras e professores ao longo de todo o ano letivo, em aulas de diferentes disciplinas, tanto do ensino fundamental (os dois segmentos) quanto do ensino médio.
O tema foi abordado sob as mais diferentes perspectivas: diversidade étnico-racional, diferenças entre hábitos alimentares e de sotaques das várias regiões do Brasil, divergência entre diferentes paradigmas científicos em um contexto histórico específico (Inquisição), culturas e crenças religiosas. Foram apresentações de crianças, adolescentes e jovens que muito me emocionaram por conta da dedicação de cada um deles mas, principalmente, pelas falas das/dos professoras/es que possuíam uma visão crítica e consciente de seu papel social na formação dos seus alunos.
Os discursos de duas professoras, particularmente, me chamaram a atenção. Uma delas, professora de crianças do 2° ano do ensino fundamental, apresentou como proposta um desfile com diferentes tipos de penteados em crianças com os mais diversos tipos de cabelo e disse: "não precisamos seguir a ditadura da chapinha". Em uma turma, cuja maioria são alunos negros, ter cultivado desde esta idade o ideal de que devemos nos assumir como somos e respeitarmos nós mesmos é um trabalho que exige compromisso com o magistério que visa à formação de pessoas que questionarão os "slogans" da mídia e os modelos de beleza impostos por ela.
Neste mesmo sentido outra professora do primeiro segmento do ensino fundamental disse uma frase que jamais me esquecerei: "Se reconhecer como diferente é poder reconhecer o outro como igual". Na apresentação de seus alunos, ela buscou romper com a dicotomia negro-branco dizendo que somos todos coloridos e distintos e que, por isso, o respeito é fundamental.
Não posso deixar de comentar, ainda, outras duas apresentações dos alunos dos últimos anos do ensino fundamental. Em uma delas, o tema era a Inquisição e os alunos representavam personagens históricas da Ciência relacionadas aos modelos heliocentrista e geocentrista. A encenação permitiu-nos observar a personificação de cientistas e, sobretudo, buscou explorar as relações entre os contextos histórico, cultural e religioso com a legitimação de conhecimentos científicos. A segunda representação teatral deste mesmo grupo de alunos trazia uma família composta por um pai branco, uma mãe negra e uma filha com cor de pele morena que estava buscando a autorização do pai para namorar um rapaz negro. O discurso racista do pai que, apesar de ser casado com uma negra, não admitia que sua filha namorasse com "um rapaz qualquer" foi questionado tanto pela mãe quanto pela adolescente. O interessante é perceber que, apesar do "final feliz", algumas questões ficaram no ar e eu considero isso o mais importante.
Foram tantas apresentações naquela manhã e eu, infelizmente, por questões de espaço e memória não irei descrevê-las. Apenas quero deixar registrado meu contentamento em perceber que nesta escola pública de uma área periférica de um município também marginalizado no estado do Rio de Janeiro está, no seu cotidiano, possibilitando e criando condições para que a diversidade cultural seja algo que deixa de estar tão distante em um eixo transversal dos Parâmetros Curriculares Nacionais e, de fato, seja discutida e posta em ação no espaço escolar.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Dos corredores a algumas constatações sobre a formação universitária

Converso bastante com meus alunos e ex-alunos de maneira informal. Gosto de estar com eles, ouvir o que eles têm a me dizer sobre o que estão vivendo na universidade e permito-me sentar no banco do corredor ao lado deles para, nestes momentos descontraídos, sermos além de professora e alunos: sermos gente.
E nessas conversas eu escuto queixas e elogios a outros professores, disciplinas consideradas difíceis ou chatas, colegas que não são comprometidos com o estudo, entre outros assuntos mais "polêmicos" como, por exemplo, o consumo de drogas.
O que tenho percebido desta geração de futuros professores de ciências é o desenvolvimento de uma criticidade, exatamente no sentido que Freire colocou: "(...) uma das tarefas precípuas da prática educativo-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil"(1). E não estou aqui detendo-me às "fofocas de bastidores". O que sinto, neste ambiente informal, é a presença de vários questionamentos sobre sua própria formação inicial e várias de suas experiências na instituição universitária que também é integrante do sistema educacional no qual eles virão atuar em poucos semestres. 
Assim como nós professores, os alunos/licenciandos também estão cansados. (E muitas vezes, confusos!). Não conseguem entender as relações entre disciplinas oferecidas por diferentes departamentos (às vezes, até do mesmo departamento) e sentem que estão lendo demais, ouvindo demais, porém pensando e vivenciando pouco o cotidiano escolar. Em um grupo de discussão no Facebook um colega professor indicou esta reportagem (leia aqui) que me fez refletir sobre a sobrecarga de disciplinas que nossos alunos têm na universidade e observar, nas tais conversas informais, indícios desse desgaste.
Abrindo um parênteses para fazer uma auto-crítica. Eu mesma cobro a leitura de muitos textos em todas as disciplinas que ministro, e acredito que faz parte da formação deles - enquanto futuros professores - desenvolverem justamente uma leitura crítica acerca dos diferentes temas relacionados à educação em ciências. 
Acontece que nossos alunos não estão conseguindo, em vários momentos de sua formação inicial, juntar as pontas, fazer os "links" entre os inúmeros conteúdos com os quais são bombardeados todos os dias nas aulas. Por outro lado, e de uma forma dialética encantadora, estes mesmos alunos estão desenvolvendo sua curiosidade (epistemológica), que vem permitindo-lhes questionar porque determinados saberes são valorizados na universidade; e já começam a se perguntar sobre àqueles que devem estar, ou não, presentes em suas aulas lá na escola.
Certamente que para mim, que me considero apenas mais uma educadora que pretende formar, junto com meus colegas, professores conscientes de seu inacabamento e não meras marionetes que seguem currículos mínimos e dizem amém aos livros didáticos, é muito gratificante perceber o amadurecimento intelectual destes jovens. E esta semana, relendo alguns textos do Paulo Freire, deparei-me com uma de suas elaborações filosóficas que sintetizam, de certo modo, o que quis destacar neste post: 
"O pensar certo sabe, por exemplo, que não é partir dele como um dado dado, que se conforma a prática docente crítica, mas também que sem ele não se funda aquela. A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, "desarmada", indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. Este não é o saber que a rigorosidade do pensar certo procura. Por isso, é fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador" (2).
Prefiro acreditar que, apesar de tantos percalços, estamos no caminho certo.

(1) FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 32.
(2) Idem, p. 38.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Os resultados das pesquisas e ensino de ciências: indo além das "boas intenções"

Estive recentemente no maior congresso nacional de minha área de atuação profissional, o IX Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências, e tive a oportunidade de ter contato com produções recentes que de alguma forma sinalizam o caminho que estamos tomando, especialmente no pilar universitário “pesquisa”. Não tenho condição de fazer qualquer análise mais aprofundada dos trabalhos apresentados – uma vez que suas atas ainda não foram divulgadas – e tampouco acho que me proporei a fazer uma revisão minuciosa quando estas sejam publicadas. Por ora, gostaria de destacar apenas um ponto.
Ele está relacionado à própria temática do encontro (“A Pesquisa em Educação em Ciências e seus Impactos em Sala de Aula") que, por sinal, não poderia ser mais propícia ao que tenho colocado aqui no Blog em alguns posts e, especificamente a movimentos de docentes de diferentes níveis de ensino que vimos observando em nosso país ao longo deste ano. Ocorreram três mesas nas quais pesquisadores nacionais e internacionais debateram sobre o assunto. Sim, é acalentador ouvir de referências da área que a melhor saída não é ditar ou prescrever ao professor da educação básica “soluções mágicas” a serem adotadas para a melhoria do ensino. Que não se trata de “levar o conhecimento científico” produzido em nossas pesquisas àqueles que “apenas” dedicam-se ao ensino, pois se trata de envolvê-los e fazê-los cada vez mais participar deste processo de “produção científica” em uma relação simétrica de parceira.  Eu mesma, recentemente, tive um projeto de pesquisa aprovado no CNPq que pretende ter o professor não apenas como sujeito mas também como analista ao longo de todo o processo de desenvolvimento da pesquisa.
No entanto, eu gostaria de compartilhar algo que muito me incomoda e que, particularmente, durante as manifestações que tivemos no Rio de Janeiro durante a greve dos professores das redes municipal e estadual deixou-me bastante mobilizada. Não sei até que ponto o discurso já foi incorporado à prática. Ainda me questiono sobre as relações que temos estabelecido com a escola pública em nossas pesquisas. Afinal, estamos também sendo partícipes de um sistema educacional e de pesquisa no qual a quantificação impera e o reconhecimento de nossa intelectualidade passa, obrigatoriamente, pelo número de projetos financiados, alunos de pós-graduação orientados, artigos publicados, participações em bancas, entre outros, cujo processo frequentemente é premiado com bolsas de produtividade. A “cultura do Lattes” é extremamente perversa e coloca-nos, muitas vezes, em posições de adversários.
Parece-me ser tempo (mais do que urgente) de nós, pesquisadores da área das Ciências Humanas ou Sociais Aplicadas, repensarmos nosso lugar de atuação na Educação Brasileira. Talvez em algumas circunstâncias sermos mais “educadores” e menos “pesquisadores em”. Sei que isso não é nada trivial e nem será solucionado de uma hora para a outra.
Certamente que reconheço na própria organização do ENPEC e em debates que vêm acontecendo em diversas universidades e faculdades de educação e de formação de professores (incluindo a minha) como um passo importante. Porém, como mesmo explicitei acima receio continuarmos nessa ciranda meritocrática sem fim na qual estamos sendo submetidos cruelmente no nosso cotidiano educacional.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Alguns comentários sobre o "blá blá blá" dos "entendidos em educação"

Outro dia li em um Blog uma pessoa comentando: ninguém quer ser professor de escola pública. Afinal, são péssimos salários, condições de trabalho horripilantes e alunos cada vez mais indisciplinados. Dias antes havia lido em uma revista de divulgação científica muito conceituada, na coluna de um cientista da área das ciências duras, sua sentença de que os cursos de licenciatura em Ciências Naturais (especificamente Biologia e Química) necessitavam de uma ênfase maior no conteúdo (sobretudo de Física). Alguém poderia palpitar sobre a formação inicial deste cientista? Sim, coincidentemente ele é físico "hard". Hoje vi em alguma postagem no Facebook a opinião de algum colunista ou blogueiro de que os graduandos estão saindo das universidades quase tão semi analfabetos quanto entraram.
Quando me deparo com essas "verdades" que são jogadas na Internet e que vários assumem para si mesmos e propagam por aí, dois pensamentos me ocorrem: o primeiro, tem gente que não é do meio querendo dar pitaco onde não é especialista e acaba falando besteira; e o segundo, não há como desvencilhar a formação inicial dos futuros professores daquela educação básica que eles tiveram nas escolas. Sobre o primeiro pensamento eu não irei me deter, de forma direta. Porém sobre o segundo gostaria de fazer algumas considerações.
Como os cursos de licenciatura são menos visados e a concorrência é pequena (na área das Ciências Naturais a relação candidato vaga é baixa), acabamos tendo quase uma paridade entre alunos oriundos de escolas públicas e escolas particulares. Para não dizerem que estou cuspindo dados, baseio-me no censo deste ano da universidade na qual sou professora (UERJ) para fazer esta afirmação. A UERJ tem suas particularidades (sobretudo por ser pioneira no Estado do Rio de Janeiro no sistema de implantação de cotas) porém acredito que esta estatística possa ser encontrada nas demais universidades. Desta forma, temos universitários que passaram sua vida toda na escola pública, sofreram de todas as suas mazelas e compartilharam de suas qualidades. Neste ponto eu gostaria de focar em algo que não tem relação (direta) com a formação científica destes licenciandos, mas sim com a formação geral, em todas as disciplinas, que eles deixaram de ter na educação básica.
Sinto que os licenciandos não têm tantos problemas com a língua portuguesa. Existem alunos que escrevem "trasmição"? Existem. Mas isso não é crítico, na grande maioria dos casos. Meus alunos sabem se expressar, escrevem de forma coerente e coesa. No entanto, falta-lhes um componente essencial: cultural geral. Eles leram pouco, eles sabem pouquíssimo da história do Brasil, estão pouco antenados com questões políticas e econômicas atuais e, o pior de tudo em minha humilde opinião, não têm capacidade de se colocarem criticamente frente ao que lhes está sendo dito (estou aqui referindo-me especificamente aos alunos do primeiro período, os quais passaram anos na escola sendo "domesticados" e "podados"). Uma escola que não forma pessoas capazes de questionarem todo e qualquer assunto com o qual elas tenham contato não pode ser considerada uma boa escola. Independente de ser pública ou particular. Sinto falta de alunos que olham nos meus olhos e me desafiam. Afinal, o que será do futuro da escola pública se não tivermos professores desafiadores e questionadores do sistema?
Por outro lado, eu tenho sido confortada quando estou com os alunos de períodos mais avançados. Os licenciandos do quinto período, por exemplo, não se convencem tão facilmente. Já têm suas visões de mundo e da docência mais elaboradas e têm me feito pensar, inclusive, sobre aspectos do magistério que eu jamais havia considerado. Ou seja: há esperança.
Não acredito que os licenciandos do curso onde dou aula sairão semi analfabetos, nem linguística, nem politicamente falando. Também não acho que eles precisam saber mais física e mais química. Eles precisam, sim, entender que física e química são fundamentais para a compreensão de fenômenos naturais os quais ao serem ensinados por um professor de biologia deve ser abordados da forma menos compartimentalizada possível. E, finalmente, não acho que nossos futuros professores não atuarão em escolas públicas. Eles estarão lá, fazendo no dia a dia, uma escola pública de qualidade e igualdade, para todos e com todos.

domingo, 27 de outubro de 2013

ENEM, entrada na universidade, avaliação de escolas e uma questão sobre a Educação Brasileira

No final de semana em que está acontecendo o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) não há como tratar de outro assunto. Aqui no Blog, na aba da direita, encontra-se uma entrevista com um professor que acaba de defender sua tese de doutorado na USP e que tinha como objetivo compreender os limites e as possibilidades de uso dos resultados do ENEM como indicador de qualidade escolar. De fato, o que temos observado após a divulgação dos resultados finais do exame a cada ano é um ranqueamento das escolas brasileiras a partir do desempenho de seus alunos no mesmo. O que o Prof. Dr. Rodrigo Travitzik constatou em sua tese  é que a escola é o segundo fator que influencia diretamente no desempenho do aluno no ENEM, sendo que o primeiro está relacionado ao seu nível socioeconômico (cerca de 75%). Desta forma, o ENEM estaria sendo utilizado como um indicador de qualidade escolar que não reflete atribuições relacionadas propriamente ao ensino das escolas mas sim, novamente, servindo para "mascarar" aquilo que realmente impacta no sucesso escolar e acadêmico dos alunos: suas condições socioeconômicas.
Ou seja, o uso do ENEM para além de seu objetivo primeiro que é selecionar alunos para ingressarem nas universidades brasileiras como promotor de rankings das escolas não estaria retratando algo que é mais do que urgente e gritante em nosso país: a desigualdade social e econômica que continua sendo perpetuada pelo nosso sistema educacional.
A questão que me coloco e que eu adoraria que fosse debatida fora dos muros da academia, com toda a população e com nossos representantes políticos é: quando (e como) teremos uma Educação que contemple todas as classes sociais e econômicas de modo que, um dia, não tenhamos mais a discrepância brutal entre cada uma delas no que diz respeito ao acesso aos bens culturais do nosso país?
Acho que a resposta passa por dois pontos: 1) o interesse por parte de nossos representantes políticos por uma Educação pública de qualidade (que não é medida por ENEMs, SAEBs e Provinhas Brasil) e 2) o valor que é atribuído à Educação como alavanca para a mudança social de um país que hoje não demonstra ter qualquer tipo de interesse em investir na escola pública como agente promotora de igualdade.
Mas não há como desconsiderar o nível micro: existem alunos que conseguem romper a organização do sistema e, apesar de estudarem em escolas públicas mal avaliadas, pertencerem a classes sociais baixas, terem pais com pouca (ou nenhuma) escolaridade, chegam à universidade, se graduam, às vezes, pós-graduam e se estabelecem de alguma forma na sociedade. O problema é que muitos deles não conseguem perceber isso e continuam contribuindo para alimentar o modelo social cruel no qual estamos inseridos.
Talvez o mais importante seja seguir acreditando que não há como haver mudança sem que mudemos. E sei que não somos poucos os professores que acreditam na Educação como via de mudança e seguem se dedicando no dia a dia para que todos os alunos não necessariamente cheguem à universidade mas possam ter condições de decidir aquilo que querem fazer e até onde querem chegar.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O olhar do aluno quando o colega sofre discriminação na escola

O vídeo que postei aqui no Blog semana passada ("Uma lição de discriminação") não poderia ter chegado até mim em momento mais propício. Não, eu não estou enfrentando algum tipo de discriminação nas turmas em que dou aula na graduação e na pós-graduação (não que eu saiba!). Mas porque esta semana minha filha que está no 4o ano do ensino fundamental veio conversar comigo sobre um colega seu que está sofrendo bullying. Ela puxou o papo me perguntando se quando eu estava na escola se algum amigo meu tinha sofrido bullying. Eu respondi que sim e lá pelas tantas ela falou da sua preocupação com um colega que era discriminado por ser "esquisito": ele tirava meleca e colava na mesa, falava sozinho e levava brinquedos estranhos para a escola. Ela disse que conversava com ele normalmente mas, principalmente, os meninos da turma pegavam bastante no pé do colega. Confesso que fiquei me perguntando até aonde deveria ir aquela conversa com minha filha: se parava na orientação que dei a ela como mãe ou se eu (como educadora) deveria/poderia interferir no que estava acontecendo na sala de aula dela e ir até à escola e expor a situação.
Porém, não estou aqui para colocar em debate uma situação pessoal mas gostaria de levantar algumas questões que muitos de nós professores fingimos ignorar em nossas aulas porque achamos que é "coisa de criança" ou "implicância normal de adolescente". Aliás, acho que no vídeo a professora faz uma experiência com seus alunos que já havia despertado algumas perguntas em mim. Será que como professores não temos o dever de ensinar o aluno a respeitar o outro? Será que respeito se ensina? Será que a discriminação é apenas uma questão racional ou pode ser também instintiva e, assim, não há muito o que se fazer?
Outro dia eu falei com meus alunos da graduação que sou absolutamente contra esse bordão de que "professor ensina e pais educam". Eu sou professora e educadora. Eu educo sim! Educo pelo ensinar do meu conhecimento, pelos meus exemplos, pelos valores que transmito, pela relação que construo com meu aluno. Então, se eu sou mais do que uma "ensinadora de conteúdos" eu tenho que assumir para mim a responsabilidade de formar pessoas que respeitem umas às outras. Desta forma, eu não posso permitir que um aluno meu seja segregado porque tira meleca (quem não tira?) ou porque fala sozinho (quem não fala?). A primeira pergunta que me fiz quando minha filha me falou do caso do menino foi: como será que ele está se sentindo? (E tenho certeza de que me questionei isso porque ela estava preocupada sobre como o colega se sentia quando passava por aquelas situações de discriminação). Imagino que ele deve estar sofrendo e penso sobre as consequências que isso tudo poderá acarretar no restante da vida dele. Não sou psicóloga educacional, mas acho que ninguém consegue sair ileso emocionalmente de uma situação desse tipo.
Não sei como as professoras e a equipe pedagógica da escola da minha filha estão lidando com o caso deste menino. Mas gostaria de acreditar que um(a) professor(a) atento(a), que não apenas ensina a resolver equações, a ler e escrever, a história do Brasil, a decomposição dos alimentos ou as regras dos esportes, já teria notado o que está se passando com aquele aluno e tomado alguma atitude. Por outro lado, eu reconheço que não é fácil fazer alguma coisa a respeito. Afinal, qual de nós nunca teve uma atitude discriminatória (às vezes mascarada por uma brincadeira) e não percebeu o que estava fazendo? Então, não é nada simples abordar a discriminação em sala de aula.
Para finalizar, e não falarem que não falei de Ensino de Ciências, deixo como sugestão a leitura de um texto que trata da relação entre o Movimento Eugênico (nunca ouviu falar? Não se envergonhe, eu também desconheci por um bom tempo...) e o ensino de biologia. Existem algumas aproximações com a questão de segregação e discriminação presente tanto neste post, quanto no vídeo. A referência completa e o link para baixá-lo estão aí abaixo.
SCHNEIDER, E. M.; JUSTINA, L. A. D.; MEGLHIORATTI. Eugenia no Brasil: quando um movimento ideológico se justifica por um discurso biológico. In: Atas do VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências. Campinas, SP: ABRAPEC, 2011. Disponível em: http://www.nutes.ufrj.br/abrapec/viiienpec/resumos/R1448-2.pdf.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

No Dia do Professor...

... eu desejo que todos nós, professores e professoras, que decidimos seguir nesta bela profissão, acreditemos todos os dias em nosso poder formador e transformador. Minha mensagem para todas/os colegas e companheiras/os de profissão e de luta por uma Educação Brasileira de qualidade e igualdade está representada nas palavras do grande Paulo Freire. 
Parabéns pelo nosso dia! 
Abraço fraterno,
Tatiana Galieta.

"Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor não importa o que. Não posso ser professor a favor simplesmente do homem ou da humanidade, frase de uma vaguidade demasiado contrastante com a concretude da prática educativa. Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda. Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura. Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo. Sou professor contra o desengano que me consome e imobiliza. Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por este saber, se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo, descuidado, corre o risco de se amofinar e de já não ser o testemunho que deve ser de lutador pertinaz, que cansa mas não desiste. Boniteza que se esvai de minha prática se, cheio de mim mesmo, arrogante e desdenhoso dos alunos, não canso de me admirar." Paulo Freire (Pedagogia da Autonomia)

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Democracia, ensino de ciências e, claro, cidadania!

O Estado democrático tem seus governantes eleitos pela população. É o povo que decide quem serão seus representantes nos poderes legislativo e executivo e tais pessoas deveriam tomar decisões em consonância com aquilo que o povo quer e necessita. Acredito que uma das grandes questões no exercício da gestão democrática encontra-se exatamente nesse ponto: uma vez eleitos os políticos não retornam à sociedade para consultá-la sobre as principais decisões que afetam diretamente seus eleitores. Por outro lado, não possuímos no Brasil uma cultura de acordo com a qual estejamos acostumados a cobrar de nossos representantes aquilo o que eles prometeram em suas campanhas ou, simplesmente, tudo o que nos é de direito requisitar (por exemplo, os serviços básicos de saúde e educação que nos são garantidos na própria Constituição Federal).
Então, alguns irão argumentar que há necessidade de se implementar mecanismos pelos quais a população possa ser ouvida diretamente a não ser pelo mecanismo do voto direto, como pelos plebiscitos ou referendos. Há também os que defendam o voto facultativo que retira a obrigatoriedade do cidadão em participar das eleições diretas.
Você deve estar se perguntando porque eu, professora do ensino superior da área de Educação, estou escrevendo sobre isso em um Blog sobre ensino de ciências. Por um simples motivo, caro colega leitor: devido ao meu questionamento interno sobre o que desencadeou a ação violenta da Polícia Militar do Rio de Janeiro na noite de sábado (dia 28 de setembro) na Câmara Municipal e nos dias decorrentes. Professores que ocupavam esse espaço que melhor deveria representar o regime democrático foram covardemente agredidos e postos para fora da casa. As fotos e os vídeos estão por aí na Internet e aqueles que ainda não tiveram oportunidade de vê-los basta dar um rápida busca na rede.

Algumas pessoas tendem a centralizar esta lamentável ocorrência nas figuras de nossos representantes de Estado (Eduardo Paes, Sérgio Cabral e Dilma Roussef, prefeito, governador e presidente, todos aliados políticos). Concordo que há muito o que debatermos sobre as alianças políticas entre PMDB e PT, sobre a forma com que nossas polícias têm atuado na sociedade (via repressão e violência que fazem com que a população desconfie e tema corporações que deveriam nos proteger) ou sobre as diferentes formas de manifestações populares as quais em algumas ocasiões violaram os direitos de outros cidadãos. Mas, sinceramente, acho que o "xis" da questão não está apenas situado nas tomadas de decisões do Paes ou do Cabral (ambos em seus segundos mandatos, ou seja, a própria população sinalizou que estava satisfeita com seus governos e os reelegeram), em seus mandos e desmandos na cidade e no estado do RJ, em suas licitações, contratos e repasses de verbas que estão aí para aqueles que conseguem ver, verem. Acho que o nó central ainda é a Educação, ou melhor, as táticas quase silenciosas e perversas que o Estado democrático vem adotando para remover da Educação seu papel político e social. Porque, cá entre nós, parece-me óbvio criticar os governos militares sobre suas políticas em relação à Educação. Porém, o esvaziamento e a desvalorização que a Educação brasileira tem assumido dentro do Estado democrático é algo que merece ser analisado com mais atenção. Relações estreitas com o neoliberalismo não são meras coincidências.
Alguns podem voltar a me questionar e me trazerem "ao meu devido lugar": Ok, mas e o que o ensino de ciências tem a ver com isso tudo? Respondo com outra questão: Até quando vamos insistir com essa falácia de que ensinamos ciências para formar cidadãos críticos e plenos na sociedade? Acho que vou arriscar outra: Será que temos claro que projeto de sociedade queremos e que tipo de cidadão pretendemos formar para esta mesma sociedade? 
Afinal, criticidade sem consciência é, parafraseando François Rabelais, somente ruína da alma.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O que vem primeiro: ensino ou pesquisa?

Sabe o antigo dilema do ovo e da galinha? Pois é. Ao reler um artigo hoje essa questão me veio à mente: o que vem primeiro? O ensino ou a pesquisa?
Os autores defendem um repensar epistemológico da pesquisa em educação em ciências de modo a orientar mudanças significativas no ensino de ciências. Este argumento, que aliás é muito bem fundamentado no texto, tende a me despertar certa "desconfiança" (no bom sentido da palavra). Afinal, outros diversos estudiosos defendem que na escola também há produção de conhecimento que possui uma lógica epistemológica própria e, desta forma, o ensino de ciências na escola não seria apenas produzido em referência ao conhecimento científico. Essa ideia é reafirmada quando olhamos para o cotidiano escolar onde percebemos que o impacto dos resultados das pesquisas em educação em ciências, na grande maioria das vezes, é lento passando por um processo de reelaboração. Não há uma linearidade entre pesquisa e ensino e vice-versa.
Seria no mínimo ingênuo acreditarmos que as pesquisas que fazemos na academia "ditam" a seleção dos conteúdos e das metodologias de ensino presentes nas aulas de ciências. Por outro lado, também não podemos ser hipócritas e afirmar que é a realidade (nua e crua) da escola (e, mais especificamente, do ensino de ciências) que constitui nosso objeto de pesquisa. Ah, claro. Existem as pesquisas teóricas... Mas de que adianta teorizar sobre uma prática distante e idealizada?
Talvez já tenha passado o momento de deixarmos o pedestal da academia que dita à escola o que deve ser feito. Naquele artigo (prefiro não revelar qual) os próprios autores afirmam que devem ser feitas mais pesquisas com os professores e não sobre os professores. Mas, cá entre nós, estaríamos nós pesquisadores dispostos a abrir mão do papel de especialistas, doutores, para produzirmos um conhecimento no qual a voz dos professores é legitimada (e não apenas analisada)?
Fica a pergunta.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

"Hoje tem aula no laboratório, professora?"

Meus alunos do ensino fundamental adoravam o laboratório. Mesmo quando não tínhamos o direito de utilizá-lo como espaço para a aula de ciências (por várias questões burocráticas que não pretendo minuciar no momento) eu sempre buscava inserir atividades práticas nas aulas que eram dadas na sala comum. Quando, enfim, conseguimos ter entrada no laboratório que vivia fechado, às moscas, com materiais químicos perdendo a validade, foi um presente para eles. Por outro lado, vi que meu trabalho seria redobrado pois, além de ter de elaborar roteiros que superassem a simples demonstração e/ou comprovação de teorias, eu tinha que dar conta sozinha de todo o preparo da aula e da arrumação do laboratório após a aula. Lembro-me que geralmente eu era a primeira e a última professora a sair da escola porque sempre estava envolvida com essas atividades que para mim eram muito cansativas mas que se tornavam altamente gratificantes quando os alunos me faziam a pergunta título deste post. Para mim era o maior indício de que eles gostavam e, mais, percebia em seu desenvolvimento escolar a aquisição de determinadas habilidades que eu acreditava (e ainda acredito) serem fundamentais no ensino de ciências. Por exemplo, a observação crítica, a elaboração de perguntas que poderiam ser respondidas via pesquisa científica (não necessariamente experimental) e a capacidade de associar variáveis relacionadas a um determinado fenômeno natural.
Atualmente percebo que a qualidade das aulas - de acordo com a formação que tenho hoje e com o que tenho lido na literatura - nem sempre foi a mais elevada. Tinham aulas que eram mesmo de execução de protocolos mais fechados, com respostas descritivas e pouca discussão dos resultados. Em outras eram feitas observações de características morfológicas de determinadas espécies, atividade esta que às vezes pecava pelo determinismo evolutivo quando eram buscadas as relações adaptativas entre aquelas e seu ambiente. Enfim, cheguei à conclusão de que por mais deficientes que fossem minhas aulas no laboratório elas acabavam exercendo um papel motivador importante para a aprendizagem dos alunos.
Mais recentemente, tenho discutido no âmbito de cursos de formação de professores, as diferentes funções que as atividades experimentais exercem no ensino de ciências. Elas são diversas e não podemos condenar(-nos) pela realização de aulas que consideramos (ou que os acadêmicos podem considerar) "pobres" do ponto de vista científico. No trabalho de Agostini e Delizoicov (2009) encontramos uma revisão sobre as terminologias utilizadas para designar as diferentes atividades realizadas em aulas de ciências (tais como: trabalho prático, laboratorial, experimental, atividades experimentais investigativas) que nos ajuda a refletir, sobretudo, sobre nossos objetivos pedagógicos quando realizamos uma aula que pretende "ir além da teoria". Certamente que a dicotomia entre "teoria" e "prática" em aulas experimentais é altamente discutível e não pretendo entrar no mérito da questão. Porém, é importante frisar que aula "prática" nunca é desprovida de "teoria" pois, caso pensemos assim, estaremos assumindo uma posição positivista de Ciência que peca pelo excessivo foco no método científico (único) e no empirismo. Esta concepção tem implicações diretas no ensino e na forma como o aluno passa a conceber o processo de produção do conhecimento científico.
Portanto, o que eu considero essencial que qualquer professor de ciências tenha em mente é que a aula prática/experimental/laboratorial pode exercer diferentes funções para o ensino de ciências e que ao termos consciência disso podemos organizá-las de acordo com nossos objetivos de ensino. Afinal, não é para qualquer conceito que visamos aprofundar que uma aula prática se faz necessária. Além disso, gostaria de encorajar todos os professores a darem aulas experimentais. É cansativo sim, demanda um esforço tremendo quando não temos um ajudante mas é altamente válido. Não apenas por esta ser uma atividade que confere às nossas aulas uma característica própria ou porque desenvolve o raciocínio lógico e científico dos alunos. Mas também pelo fato dos alunos gostarem e se sentirem estimulados. E isso tem sido tão raro de ser observado nas escolas, não é mesmo?

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Um pouco de minha fonte inspiradora


“É preciso ousar, no sentido pleno desta palavra, para falar em amor sem temer ser chamado de piegas, de meloso, de a-científico, senão de anti-científico. É preciso ousar para dizer, cientificamente e não bla-bla-blantemente, que estudamos, aprendemos, ensinamos, conhecemos com o nosso corpo inteiro. Com os sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos, com as dúvidas, com a paixão e também com a razão crítica. Jamais com, esta apenas. É preciso ousar para jamais dicotomizar o cognitivo do emocional. É preciso ousar para ficar ou permanecer ensinando por longo tempo nas condições que conhecemos, mal pagos, desrespeitados e resistindo ao risco de cair vencidos pelo cinismo. É preciso ousar, aprender a ousar, para dizer não à burocratização da mente a que nos expomos diariamente. É preciso ousar para continuar quando às vezes se pode deixar de fazê-la, com vantagens materiais” (Paulo Freire) [1].

Sou uma profunda admiradora de Paulo Freire. Ele foi, na minha humilde opinião, um filósofo no sentido mais completo e bonito da palavra. Ao mesmo tempo, eu o invejo. Como pôde um simples ser humano ter conseguido ver o mundo (e não apenas a educação) desse jeito tão sutil e cheio de esperança? Porque, falemos a verdade, quando estamos em sala de aula deparados com uma turma cheia de crianças ou adolescentes desafiadores, coisa rara de se sentir é esperança.
Voltando ao Paulo Freire. Tive contato, pela primeira vez, com uma de suas obras na disciplina de Filosofia da Educação. Para quem não me conhece, fiz licenciatura em Ciências Biológicas na UFRJ. Devo ter cursado essa disciplina mais ou menos no meio do curso, ou seja, nos idos de 1998. O professor que ministrava a disciplina era um pouco mal visto no meio acadêmico mas eu só fui conhecer o verdadeiro motivo quando me tornei professora substituta dessa mesma Faculdade de Educação. Estranho isso, quando somos alunos estamos tão imersos no nosso papel social de “aluno” que não nos damos conta da complexidade (em todos os sentidos) da academia e, até mesmo, do próprio sistema educacional. Enfim, esse professor (sendo “bom” ou não) teve o mérito de me apresentar ao Paulo Freire. Como era uma disciplina curta, de um semestre apenas de duração (não me lembro a carga horária), obviamente que não seria um estudo aprofundado. Então, lemos um resumo da obra de cada um dos filósofos da educação selecionados e ele propôs que o trabalho final fosse uma leitura – incluindo comentários – mais aprofundada de um deles. Quem pensou que eu escolhi o Freire se enganou. Acho que por causa dessa enorme “moda” em torno do construtivismo eu optei por estudar o John Dewey[2] (retomei a leitura deste autor anos depois e reconheci sua relevante contribuição para a educação em ciências). No entanto, após o término da disciplina, por curiosidade comprei o livro Pedagogia da Autonomia[3]. Mudou minha vida. Não, não é exagero. Mudou mesmo. Aquelas “regrinhas” que ele colocava naquele pequeno livro eram desafiadoras e encantadoras. E como era difícil ler aquilo... Ele usava palavras, termos, que eu nunca tinha ouvido, depois percebi que ele era bom em neologismos. Fiquei encantada com o texto mas se eu disser que ele significou tudo o que alguns anos depois ele viria significar para minha constituição como professora, naquela primeira leitura, eu estaria mentindo. Anos depois, em meu doutorado, redescobri Paulo Freire (graças ao Prof. Demétrio Delizoicov) e então estava um pouco mais madura para estudá-lo de fato.
A beleza da leitura está aí. (A leitura é um tema que me encanta.) Quando lemos um texto construímos sentidos que, provavelmente, não serão os mesmos daqui a algum tempo quando teremos novamente contato com aquele texto ou quando simplesmente nos recordamos dele. Quem diz isso é a Eni Orlandi, referência na Análise do Discurso[4]. Poder ler, reler, descobrir e redescobrir o que Freire diz em seus livros foi algo que eu aprendi com o tempo. O mesmo acontecia (acontece) comigo com letras de músicas. Há sempre novos sentidos vindo à tona, outras emoções aflorando.
Tem muita gente que diz que Paulo Freire era idealista, utópico. E aí eu volto à citação que dá início a este post. Se não fôssemos capazes de ousar, não apenas na educação mas na vida, o que seria da cultura humana? Indo mais além: o que seria até mesmo da Ciência? Sem ousadia, sem curiosidade, sem sonhos, sem perguntas nós morremos ou, simplesmente, deixamos de viver intensamente. 
Se não fosse a “utopia” de Freire estaríamos até hoje acreditando (e como tem gente que ainda acredita...) que alfabetizar é ensinar o “Eva viu a uva”. Tanto se fala atualmente em letramento e esse filósofo foi mais do que precursor ao dizer que alfabetizar ou aprender a palavra é saber fazer uma leitura do mundo. Nada mais libertador do que possuir a capacidade de ler criticamente o mundo social no qual estamos inseridos e, consequentemente, buscarmos a transformação frente às injustiças que aí estão. Isso é educar. E isso é muito bonito!



[1] Freire, Paulo. Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Editora Olho d’Água, 1997.
[2] Dewey, John. Democracia e Educação. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.
Dewey, John. Vida e Educação. 3. ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1952.
[3] Freire, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 30. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
[4] Orlandi, Eni. Discurso e leitura. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1993.
Orlandi, Eni. A leitura e os leitores. Campinas: Pontes Editores, 1998.

sábado, 17 de agosto de 2013

Escola pública, qualidade de ensino e a greve de professores

Como filha de professora sempre convivi com questões relacionadas à escola, mesmo quando elas não me diziam respeito diretamente. Minha mãe atuava no primeiro segmento do ensino fundamental e se aposentou pela rede municipal do Rio de Janeiro. Apesar dela ser sempre reconhecida pela qualidade de seu trabalho, sobretudo por pais e pelos próprios alunos, nunca tive uma visão entusiasta dela no magistério. Talvez porque eu apenas me recorde dela em sua fase final na docência, já muito cansada ao ter que corrigir dezenas de cadernos e redações, preparar trabalhos e provas e se desgastar muito emocionalmente com a vida particular de seus alunos. Não me lembro de minha mãe frequentar reuniões de sindicato tampouco se mobilizar em torno de reivindicações da classe ou em greves e paralisações.
Estou fazendo este breve retrospecto pessoal apenas para tentar recuperar historicamente a desvalorização do magistério e, mais especificamente, como esta vem se dando na rede de educação do município do Rio de Janeiro. Eu estudei na escola onde minha mãe era professora, em Botafogo. Tive um ensino de boa qualidade e, ao final da década de 1980, eu ingressava no Colégio Pedro II sem qualquer tipo de "cursinho". Atualmente, a localização da escola em bairros "privilegiados" da Zona Sul do Rio de Janeiro não é garantia de bom ensino (veja esta reportagem). Acho que aspectos organizacionais, estruturais e a própria política pública da educação carioca (ou melhor, o total descaso com políticas igualitárias de educação) fizeram com que a rede venha assumindo um desgaste com o qual os professores já não conseguem conviver.
Ontem lia o comentário de uma amiga em uma rede social que me chamou muito a atenção. Ela dizia que os mesmos professores que dão aulas nas escolas públicas muitas vezes também estão trabalhando em escolas particulares. O problema então seria a "qualidade" do magistério? Vale à pena continuarmos culpando os professores pelos péssimos desempenhos das escolas públicas nas provinhas do MEC? Será que a origem do problema não é muito mais política do que necessariamente "formativa"? (Isso sem querer entrar no mérito das tais provinhas...)
Desviar a atenção dos pais, da sociedade em geral, para a classe dos professores é no mínimo cruel. Culpabilizar professores "mal formados" é, no fundo, jogar a responsabilidade no colo de outros professores: os universitários. E, com isso, a classe como um todo tende a se desunir e não se mobilizar.
Retomando minha experiência pessoal. Minha mãe, na década de 1980, era capaz de manter a casa com seu salário. Hoje, seria impossível que ela tivesse o mesmo padrão de vida daquela época apenas com uma matrícula na rede. E aí entramos na questão da perda salarial. Mas esta, na verdade, é pano de fundo de um debate muito mais amplo sobre o que de fato tem se feito com a escola pública nas últimas décadas atribuindo a ela funções que não lhe compete e tirando dela o poder de atuação transformador fundamental na sociedade.
Não sou profunda conhecedora da história da escola pública no Brasil e não quero soar leviana nos meus comentários. Porém, acredito que as paralisações dos professores do Rio de Janeiro são indícios concretos de que essa classe está cansada. E este é um movimento que não se deu por "uma simples relação de consequência das manifestações do mês passado". É algo que é resultado de anos de abandono por parte do Governo. Os professores das escolas públicas estão cansados por não terem condições dignas de trabalho: salas superaquecidas, turmas lotadas, falta de infraestrutura, ausência de tempo para o planejamento, cobrança curricular absurda devido às avaliações sistemáticas do Governo, violência e insegurança, salários indignos, entre outras coisas. 
Que não haja leviandade ao criticarmos qualquer tipo (legítimo) de manifestação dos professores. Somente quem trabalha lá sabe o que é "ser" professor, sobretudo aqueles que resistem a tudo isso e lutam pela educação pública de qualidade.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

O "velho" discurso oficial sobre a dicotomia teoria e prática na formação de professores

A velha questão da dicotomia entre teoria e prática nos cursos de formação de professores voltou a ser discutida em reportagem da semana passada na Folha de SP (confira aqui). O texto traz considerações importantes que não podem ser ignoradas por formadores de professores, porém gostaria de demarcar alguns pontos que acredito já estarem em pauta há algum tempo na agenda da comunidade acadêmica e que, o próprio Governo, vem negligenciando (sobretudo nas falas de seus representantes).
Um dos primeiros dados trazidos na reportagem é, a princípio, alarmante: "O trabalho apontou que nos cursos de licenciatura do país que formam professores de português e de ciências, a carga horária voltada à docência fica em 10%." A conclusão do Secretário Estadual de Educação de SP, Herman Voorwald, é "as licenciaturas deveriam ter menos conteúdos específicos das matérias e mais técnicas sobre como dar aulas."
Minha pergunta é: a solução para a questão da dicotomia entre "teoria" e "prática" nos cursos de formação de professores é a inserção de disciplinas "mais técnicas sobre como dar aulas"? Não seria esta uma visão retrógrada, altamente tecnicista? Será que alguém aprende a "técnica" sem refletir sobre seus objetivos de ensino, a seleção de conteúdos pertinentes para atingir a esses objetivos e os fatores mais próximos e relevantes de seu próprio alunado?
Por outro lado, o prof. da Faculdade de Educação da USP, Manoel Oriosvaldo, possui uma visão contrária ao discurso do secretário. Segundo ele: "Com o salário que se paga ao professor, é difícil convencer um jovem a assumir uma sala de aula". Além da questão salarial e de condições de trabalho ele diz, especificamente sobre os currículos das licenciaturas, que ao diminuir a parte teórica dos cursos o papel do professor é simplificado. Após anos de estudos consolidados no campo do currículo, após termos importantes filósofos educacionais brasileiros sinalizando a relevância do conceito de "práxis", pergunto-me porque ainda estamos discutindo essa questão. Já não existem diretrizes curriculares nacionais para cursos de licenciatura supostamente atualizadas? Qual o motivo desse imbróglio? A resposta pode ser aparentemente simples, mas tem embutida nela um ponto crucial que parece estar sendo "posta para debaixo do tapete" por quem faz políticas públicas em educação: não basta criar diretrizes curriculares, as relações que se estabelecem na instituição de ensino (neste caso específico, a universidade) acabam sendo as determinantes na organização curricular. Na academia há disputa de poder, de status, de dinheiro, de espaço, de reconhecimento pelos pares etc. Não há como achar ingenuamente que os professores que dão as disciplinas de "conteúdo específico" de uma hora para a outra abrirão mão de seus espaços nas grades curriculares ou que, tampouco, passarão a dialogar com os professores das disciplinas "práticas", de "ensino", "pedagógicas", como preferirem. A questão é muito mais profunda e não diz respeito apenas à boa vontade de coordenadores de licenciaturas. É uma questão política, cultural de cada instituição em particular.
Na reportagem, em referência especificamente a cursos presenciais de licenciatura de Ciências Biológicas mostra-se o seguinte resultado da pesquisa: 65% da carga horária é destinada aos conhecimentos específicos e "apenas"  10,4% são de conhecimentos específicos para a docência. Não há como analisar esses dados sem refletir sobre a história da constituição da licenciatura em Ciências Biológicas e sua relação intrínseca com o bacharelado. Não há como deixar de comentar sobre a marginalização que os professores das disciplinas pedagógicas sofrem em seus departamentos ou faculdades pelos próprios colegas. É, repito, uma questão histórica que não é equacionada em um passe de mágica mas que precisa ser debatida não apenas na esfera acadêmica mas sobretudo em instâncias oficiais nas quais são elaboradas políticas públicas educacionais.
Outro resultado apontado pela pesquisa na reportagem é a antiga formação em parceria entre Faculdades de Educação e "Faculdades Especializadas" (na minha formação, por exemplo, na UFRJ, fui aluna da FE e do Instituto de Biologia). Esse dado está em consonância com o que comentei acima.
Por fim, mas não menos importante, apenas uma observação sobre a citação do Sr. Ministro da Educação, Aloizio Mercadante, presente logo no início da reportagem: "Não dá para formar um professor só lendo Piaget". Sr. Ministro, não dá para formar professor quando os atuais professores são motivos de chacota em toda a sociedade (até mesmo entre os próprios professores) e tendo sua profissão completamente desvalorizada pelos últimos governos (refiro-me aqui a TODOS os governos brasileiros desde o Golpe Militar). Sr. Ministro, não dá para formar um professor pagando esse piso mínimo de vergonha aos professores atuantes. Sr. Ministro, não dá para formar um professor quando nosso próprio ministro da educação não é um Educador, quando esta figura não reconhece o papel dos museus na formação cultural dos alunos. Sr. Ministro, não dá para formar um professor só com bonitos discursos e belas palavras de políticos que insistem em nos decepcionar com sua trajetória política que em algum momento é posta por água abaixo na corredeira da ética da vida.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

O encantamento x A morte da utopia

Tenho percebido, dentre meus licenciandos em Biologia, uma maioria de alunos aplicados, interessados e envolvidos em questões educacionais. Sinto que boa parte deles realmente gosta do magistério e quando são convidados a discutir temas específicos do ensino de ciências conseguem estabelecer relações entre suas experiências anteriores como discentes na escola e como futuros professores em seus estágios supervisionados.
Não me deterei à minoria que, por motivos diversos e pessoais, não pretendem seguir na carreira docente. Estes poderão a vir se encontrar em outras áreas relacionadas à Biologia ou até mesmo em outras profissões. Acho que isso é normal e acontece em qualquer curso universitário. 
Quero, então, me deter a este grupo que chega entusiasmado na licenciatura ou, às vezes, nem tão entusiasmado assim no início mas que ao decorrer do curso vai tomando gosto pela Educação e pelo Ensino de Ciências.
O que eu fiquei me perguntado é: em que momento acontece a desilusão, a decepção, a morte da utopia? Porque o que estes mesmos licenciandos hoje empolgados me relatam de suas experiências nas escolas em seus estágios contrasta dolorosamente com esse sentimento de empolgação na formação inicial.
Talvez para alguns a utopia nem chegue a ser algo considerado. Alguns não chegam nunca a sentir que podem mudar o mundo, reverter o quadro de injustiça social do país, contribuir para a formação de pessoas com valores, decentes e críticas. Talvez alguns nunca achem que sua "simples" aula possa fazer a diferença.
Mas tem aqueles outros que saem da universidade repletos de motivações, de planos e de sonhos a serem postos em prática. E o que acontece nós já sabemos. Alguns se deparam com boas condições de trabalho em escolas particulares ou públicas. Mas aí há o problema de desvalorização salarial, da própria profissão e do seu conhecimento que não é reconhecido como "epistemologicamente válido" por boa parte daquela mesma academia onde ele foi formado.
Outros atuam em escolas públicas sem qualquer tipo de infraestrutura: sem banheiros limpos, sem água, sem segurança, sem merenda decente. 
Há ainda aqueles que convivem com alunos completamente desamparados pela família, esquecidos por seus pais, que são educados pelas/nas ruas. Estes sofrem ao perceber que dar aulas de ciências às vezes é questão secundária para essas crianças e esses adolescentes.
Eu poderia listas várias outras situações que poderiam levar estes futuros professores que hoje se sentem motivados a se tornarem aquelas figuras tristes, cobradas constantemente por políticas públicas que os tornam apenas mais um número para as avaliações nacionais e internacionais. Aqueles rostos cansados, reprimidos e descrentes na educação que eles frequentemente observam nas salas de aula em que estagiam ou nas salas de professores em que aguardam o próximo tempo de aula durante o recreio.
Por outro lado, eu sei que vários deles serão a transformação. Simplesmente por acreditarem que a mudança está neles e passa por seus atos. Certamente que alguns sucumbirão. Mas todos os demais que resistirem, estes sim, serão professores de ciências, de biologia dignos. Neles, eu deposito todas as minhas fichas e minha esperança.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Quando o dizer exclui: lidando com a homossexualidade na sala de aula

"Na nossa vida cotidiana, não temos tempo para nos debruçar com a devida atenção sobre os termos que utilizamos e não nos damos conta do fato de que eles dizem muito mais do que costumamos supor. As palavras, as inflexões, o modo de construir as frases, cada uma dessas coisas tem a sua própria história. Tanto em sua gênese como em seu emprego, os termos da linguagem põem a nu os valores das sociedades que o criaram e os mantêm vivos."

In: KONDER, L. A questão da Ideologia. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.

Ao ler a citação acima em um ótimo artigo de pesquisa sobre livros didáticos de ciências, recordei-me de uma discussão interessante que tivemos na aula passada na turma de Laboratório de Ensino I, disciplina obrigatória do primeiro período da licenciatura em Biologia na FFP/UERJ. Estávamos conversando sobre sexualidade, suas abordagens na escola e, mais especificamente, em aulas de ciências e biologia. Falamos também sobre o quanto os valores apreendidos no âmbito familiar influenciam os comportamentos e também na questão da personalidade de cada um que determinam as escolhas e opções sexuais. No início desta aula assistimos dois vídeos (uma parte do documentário Meninas e um vídeo produzido por jovens sobre orientação sexual) e, da discussão que sucedeu a ele, gostaria de destacar algo relacionado a este último.
Quando falamos não apenas nos comunicamos, mas nos apresentamos ao mundo. Expomos - mesmo que sem querer, por meio do uso de "termos impensados" - nossas ideologias que não são únicas, tampouco lineares e não controversas. 
Quando um(a) professor(a) chama um aluno de "alegrinho", "bicha" ou "mocinha" ou uma aluna de "galinha", "sapata" ou "estranha" ele(a) está dizendo muito mais do que todos esses termos possam significar sob o ponto de vista de preconceito relacionado às questões de gênero. O como ele diz, o contexto no qual ele emprega o termo, carregam significados que expressam não apenas uma "opinião" mas um dizer histórico, um sentido que vem sendo construído dentro e fora da escola e que alguns professores propagam às vezes até de forma inconsciente. Certamente que nada justifica este tipo de julgamento e ofensa, porém é bem provável que caso perguntemos a alguém que use esses termos rotineiramente ele(a) afirme que não é preconceituoso(a), que não tem nada contra gays e lésbicas.
Os/as professores/as que têm propagado essa ideologia talvez não estejam atentos para a triste realidade que consiste na exclusão de alunos e alunas com tendências homossexuais da escola. No vídeo que assistimos (link acima) dois casais gays comentam exatamente isso: crianças, adolescentes e jovens estão abandonando a escola porque são humilhados pelos colegas, professores e até mesmo por dirigentes escolares.
Muito tem se falado sobre bullying contra alunos obesos, magros, "feios", "esquisitos", "nerds", com dificuldade de socialização etc. Muito também tem se discutido à respeito da sexualização cada vez mais precoce das crianças. E onde estão os debates acerca de questões de gênero? Da homossexualidade?
Eu costumo bater nessa tecla: a do slogan da educação (discurso de pesquisadores e fazedores de políticas públicas) de "formar para a cidadania". Será que discutir esse tema com nossos alunos (sim, nas aulas de ciências e/ou qualquer outra e/ou em qualquer outro espaço na escola) não se insere neste propósito? Ser cidadão não consiste também em respeitar o outro, o seu direito de escolha por sua opção sexual?
Vejo uma sociedade cada vez mais intolerante. De todos os lados. Dos religiosos e dos ateus. Dos "politizados" e dos "alienados". Enfim, de todos os extremos que se julgam estar corretos. Estamos perdendo a capacidade de ouvir o outro. De entender ou, ao menos, respeitar a fala do outro. 
Acontece que professor não pode jamais se dar ao luxo de "falar impensadamente" e com isso ferir seu aluno e seus sentimentos. Educar é um ato político, mas também de amor e de respeito ao aluno. Porque todo - e qualquer um - aluno merece ser respeitado.

sábado, 13 de julho de 2013

O "pensar científico" por crianças: possível?

Outro dia estava assistindo a um filme ("The cure", A cura) no qual as protagonistas eram duas crianças. Dois meninos na casa dos 11, 12 anos. Um deles era portador do vírus HIV em uma época em que as formas de contágio não estavam bem esclarecidas para a maioria da população e tampouco o tratamento contra a síndrome da AIDS estava bem desenvolvido.
O que gostaria de destacar deste filme, que se passa nos EUA, é a propriedade científica dessas duas crianças para falar e tratar sobre os sintomas, modos de transmissão e a busca incansável pela cura. O menino que não tem a doença desenvolve todo um método de testes para a sua hipótese de que a cura para a AIDS estaria em um chá extraído de alguma planta. Ele faz anotações sistemáticas sobre as ervas que ele colhe, as folhas, as flores, mede a temperatura do colega e a sua própria utilizando a si mesmo como "controle".
Bom, mas por que eu estou contando a história de um filme triste cujo final todos já devem imaginar e que é do tipo "sessão da tarde"?
Porque eu me surpreendi com a forma como os meninos lidam não apenas com a "doença" mas também com os conhecimentos científicos que eles aparentam ter para lidar com a questão da cura da doença. São crianças norte-americanas, que deveriam estar ao que equivaleria ao sexto ano do ensino fundamental, e que se mostram alfabetizadas cientificamente. Eles entendem o que é o "pensar científico", já que têm uma pergunta/problema, elaboram uma hipótese, fazem testes e chegam a algumas conclusões (neste caso, não muito agradáveis).
Fiquei me perguntando o quanto isso é desejável e como temos enfrentado dificuldades em ensinar o "pensar científico" - mesmo que seja dentro de uma visão empiricista ou metodologicamente monista - para nossos alunos. O aprender ciências no ensino fundamental (sobretudo nas séries iniciais) tem sido tão chato, vinculado à decoreba, que ele por si só está perdendo espaço.
Podemos pegar o primeiro atalho e criticar as professoras do primeiro segmento dizendo que elas não gostam de ensinar ciências. Há como gostar se na sua formação inicial as ciências são tão subjugadas com relação aos conhecimentos mais voltados para a Educação stricto sensu? Além disso (e considero este o fator mais fundamental da questão), se o desempenho em português e matemática - disciplinas tradicionais no currículo das séries iniciais - nas avaliações sistemáticas realizadas pelo Governo Federal vem se mostrando preocupante por que haveria de se dar mais espaço para Ciências?
O despertar do interesse pela Ciência deveria mesmo ser introduzido na infância, etapa de vida em que a curiosidade é natural e espontânea. O como fazer isso passa pela formação dos professores sim, mas muito mais por políticas nacionais e regionais de educação que pensem concretamente ações de inserção dos alunos na cultura científica. 
Não acredito que devemos retroceder no tempo e buscarmos a formação de "mini cientistas". Já que se fala tanto de alfabetização científica (ou letramento científico) por que não assumirmos essa tarefa de uma vez por todas? Uma alfabetização científica que não ignore a formação de valores, política e crítica. Que rompa com esse ensino tradicional entranhado em nossas práticas. É possível, meus/minhas colegas. É possível.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

O professor que aprende com o aluno

Quantas vezes não entramos em sala de aula subestimando o conhecimento de nossos alunos? Ou simplesmente achando que uma aula não "renderá" tudo o que você gostaria porque a turma parece quase sempre desinteressada?
E quantas outras vezes não estamos nesta mesma sala de aula, com este mesmo grupo de alunos, e não nos surpreendemos com suas reações, participações e opiniões?
Acredito que todo professor já tenha vivenciado esse tipo de experiência, em qualquer nível de ensino que seja. Talvez porque nós professores avaliamos muito além de conhecimentos, mas também posturas e atitudes. Não há como mesmo o professor que se auto-intitule como o mais progressista ou dialógico não passar por isso. Lidamos com pessoas, somos pessoas e as relações não são apenas estabelecidas entre o que um sabe e o que o outro sabe mais ou menos.
O cotidiano de uma sala de aula é encantador exatamente por isso. Por nela estarem presentes histórias de vida diversas, culturas, crenças, valores diversos.
E como isso pode ser rico para nosso exercício pedagógico!
Quando nos deslocamos, desconstruindo uma visão pré-concebida e nos permitimos aprender com o outro, com aquele que veio "ouvir" alguma coisa de nós - os "detentores do saber" - abrimo-nos à possibilidade de sermos mais.
O professor que se permite (auto) críticas, que planeja e avalia suas ações não para no tempo. 
E aprende com o tempo que nessa relação com o outro é normal "estranhar" e "reconhecer" neste a si próprio, seus limites e seus potenciais.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

As manifestações, os movimentos populares da Educação e o Ensino de Ciências

Este Blog trata de assuntos relacionados à Educação e, mais especificamente, ao Ensino de Ciências. Perante todos esses acontecimentos que têm ocorrido em nosso país é impossível não se manifestar ou se perguntar se tudo aquilo em que sempre acreditei pode estar, de fato, se concretizando.
A Educação para mim sempre foi uma das vias centrais para a mudança. Tanto a interna, via conscientização do sujeito, quanto a coletiva. Apesar de ao olhar para as escolas não conseguir visualizar um ensino que vise a politização e a criticidade dos alunos estamos vendo que os (ex) alunos estão nas ruas completamente cientes de que nossa sociedade é injusta, desigual e desumana.
Eles não querem mais esse tipo/modelo de sociedade cujos políticos roubam, desviam verbas públicas, punem e absolvem a si próprios. Eles não querem mais uma sociedade na qual os que mais trabalham, levam horas dentro de ônibus e trens lotados para ir e voltar no percurso casa-trabalho, são os piores remunerados, vivem endividados, não têm creche para deixar seus filhos para irem trabalhar e são sempre encarados como os "coitados" e "imbecis" quem sempre elegem os mesmos. E quando digo os mesmos me refiro a toda a classe política que, com raríssimas exceções, não defende o interesse da população.
Não sou profunda conhecedora de História da Educação, gostaria muito de saber mais e sempre me esforço para relacionar a história do nosso país com nossos movimentos educacionais, mas consigo perceber que essas manifestações ocorridas até aqui constituem-se em movimentos populares de força. Mesmo que eles não tenham tido uma organização ou pauta inicial completamente clara o que importa é que a população fez a sua voz ganhar força. Vejo aqui profundas relações com os movimentos populares pós-ditadura, a Educação e o papel do profissional da educação (não apenas o professor) com o compromisso por um país justo e com condições de vida iguais para todos.
Somos nós, atores da Educação, que formamos intelectualmente, moralmente e os valores de toda a nação. Temos que lutar dia a dia, individualmente, em nosso campo de atuação sim. Mas temos que estar sempre organizados em prol da melhoria de nossas condições de trabalho e pela valorização (não só econômica) da classe. Fomos destroçados durante a Ditadura Militar e agora, via Democracia, temos que recuperar o respeito pelo magistério.
O discurso belo e pomposo do Ensino de Ciências que visa a formação de cidadãos críticos parece estar saindo do papel, pode ser que meio sem jeito, meio no tato. O enfoque CTS (Ciência-Tecnologia-Sociedade) e as metodologias que se apoiam em educadores progressistas como Freire não andavam à toa, por aí.
Estamos vivos, mais do que nunca, fazendo a diferença.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

A boniteza do dia 17 de junho de 2013

Se há algumas semanas atrás eu senti no discurso de professoras a desilusão e o descontentamento com o magistério - algo que me levou a uma profunda reflexão sobre o meu atuar docente - hoje, dia 17 de junho de 2013, eu tive motivos de sobra para acreditar que há a possibilidade de mudança.
Uma mudança social, em prol da educação transformadora, conscientizadora e crítica.
Já escrevi aqui antes sobre a dispersão e a fragmentação do trabalho do professor que, muitas vezes, dá a falsa impressão que a grande maioria da classe está indo "conforme a onda leva" e que não há resistência, tampouco ações concretas.
As manifestações que vimos hoje pelo país servem para que eu (e tenho certeza que muitos educadores) tenha mais um motivo para lutar por aquilo em que acredito: uma escola pública de qualidade, com professores tendo sua profissão reconhecida social, cultural e economicamente, e com estudantes sendo formados não para o "mundo do trabalho", mas para o "mundo das gentes".
Infelizmente, não pude ser mais uma na multidão de 100.000 pessoas que tomaram as ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro, porém estou a cada dia imbuída nesta manifestação cotidiana da promoção do exercício da cidadania. Espero estar presente na próxima.
Acredito que a mudança já começou há tempos e ela se concretiza(rá) a cada dia. Dentro de nós mesmos. E em nossa relação com o outro.
Paulo Freire estaria tremendamente sensibilizado com a boniteza que o povo brasileiro expôs ao mundo.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Os "autorizados" a falar sobre Educação têm falado algo útil?

Esta semana duas amigas escreveram algo muito parecido em suas páginas em uma rede social: o quanto aqueles que escrevem sobre educação parecem distantes da realidade da escola. Uma professora de inglês, outra professora de ciências. Cada uma em atuação em instituições distintas, públicas e privadas. Minhas amigas alertam para algo que, conforme já venho anunciando em posts anteriores, tem se colocado como uma inquietação e um desafio para a minha prática enquanto pesquisadora universitária.
Porém aqui tentarei "superar" - mesmo que momentaneamente - esta questão pessoal para refletir, de modo menos particular sobre esse tema.
Uma dessas colegas de profissão comentou sobre a impossibilidade de alguém que jamais esteve em uma sala de aula da educação básica tecer considerações apropriadas sobre esta realidade tão peculiar. Fiquei me perguntando se um aluno que sai da universidade, ingressa no mestrado, depois no doutorado, passa em um concurso público e se torna professor/pesquisador universitário de uma licenciatura poderia dimensionar o que é a escola pública brasileira. Acredito que existem algumas respostas cabíveis.
Primeira, ele poderia conhecer a escola pública no papel de aluno. No entanto, como ex-aluno ele nunca vivenciou o cotidiano do professor dessa escola; afinal, ele nunca assumiu este papel lá.
Segunda, ele poderia, durante sua formação inicial, ter estagiado em uma escola pública. Mas, aqui, novamente, ele não seria o professor regente das turmas. Ele poderia ter convivido com uma realidade mais próxima do magistério mas ainda assim não era ele o responsável por "cumprir o planejamento" e responder por todas as responsabilidades de um professor.
Terceira, suas pesquisas de mestrado e/ou doutorado podem ter investigado algum aspecto da escola pública no seu dia a dia. Ele pode ter realizado uma pesquisa empírica na qual seus dados foram coletados na escola. Desta forma, ele poderia ter tido contato - já com um olhar "mais acadêmico" - com esse universo escolar.
Quarta (mas que pode não necessariamente ser a última resposta cabível), ele poderia, ao se tornar professor/pesquisador universitário em um curso de licenciatura, orientar alunos em seus estágios nas escolas ou ainda desenvolver pesquisas sobre a escola.
Quando eu revejo todas essas possibilidades duas ideias me vêm à mente: não importa em que momento se deu o contato desse professor/pesquisador universitário com a realidade da escola pública, o que importa é: 1) que ele tenha se dado em algum momento, caso contrário ele jamais saberá do que se trata; 2) que ele possua uma concepção filosófica de educação muito bem fundamentada e, mais ainda, auto-consciente.
Eu percebo que existem pesquisadores, autores renomados de livros na área da Educação (e da Educação em Ciências) que estão muito distantes da realidade (dura, triste, sofrida, cruel) enfrentada pelos professores brasileiros. Mas não existiria então, espaço para a pesquisa teórica, de base? Claro que sim! Porém, ela não pode simplesmente ignorar o que se passa nas escolas públicas deste país. Por outro lado, também encontro pesquisadores que nunca foram professores de escolas públicas e que "perdem o sono" e "quebram suas cabeças" em busca de medidas (práticas) para a melhoria do ensino da escola básica.
Acho que não podemos generalizar, dizendo que os pesquisadores universitários estão viajando em suas teorias e esquecendo da realidade escolar. Tem gente buscando saídas sim, mesmo no âmbito de pesquisas que, para quem está de fora, pareça "descontextualizada" ou "irreal". Mas também tenho que concordar com minhas amigas que tem muito acadêmico por aí falando mais bonito do que, de fato, fazendo alguma coisa útil em prol da educação brasileira.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Literatura e leitura em aulas de ciências: alguns exemplares

Devo confessar que o tema leitura me fascina. E o mais interessante nisso tudo é que eu me considero uma pessoa "preguiçosa" para ler, que lê muito menos do que deveria. Acredito que meus colegas professores compartilham em parte dessa sensação uma vez que somos interpelados todo o tempo pelas mais diversas cobranças inerentes à nossa profissão.
Acredito que todos somos professores de leitura e de escrita mesmo sendo professores de ciências (até mesmo eu, professora universitária). E tenho buscado as mais diferentes formas textuais que possam não apenas me ajudar a ensinar algum conceito científico mas, sobretudo, estimular a criticidade dos alunos.
Recomendo a leitura da crônica de Paulo Mendes Campos, intitulada "Automóvel: Sociedade Anônima" (presente na coleção Para Gostar de Ler - Crônicas, vol. 4), na qual encontrei um potencial crítico considerável a ser explorado sobre as relações de consumo em nossa sociedade, tangenciando questões tecnológicas. Devido à sua extensão, não reproduzo aqui.
Há ainda a crônica do "Ovo", de Luis Fernando Verissimo, que nos permite tecer considerações sobre o próprio funcionamento da Ciência e a divulgação científica. (Esta segue abaixo.)
Sem falar nas letras de músicas, algumas de Gilberto Gil, que a mim fascinam pela simplicidade e ao mesmo tempo um refinamento poético incrível. (Selecionei apenas uma do Gil, por conta de espaço.)
E existem também os clássicos. Destes, escolhi uma autora que me encanta: Cecília Meireles.
Espero que a poesia inspire nosso próximos dias e nossas ações docentes. 


"Ovo" (Luis Fernando Verissimo)

Agora essa. Descobriram que ovo, afinal, não faz mal. Durante anos, nos aterrorizaram. Ovos eram bombas de colesterol. Não eram apenas desaconselháveis, eram mortais. Você podia calcular em dias o tempo de vida perdido cada vez que comia uma gema.

Cardíacos deviam desviar o olhar se um ovo fosse servido num prato vizinho: ver ovo fazia mal. E agora estão dizendo que foi tudo um engano, o ovo é inofensivo. O ovo é incapaz de matar uma mosca.

Sei não, mas me devem algum tipo de indenização. Não se renuncia a pouca coisa quando se renuncia ao ovo frito. Dizem que a única coisa melhor do que ovo frito é sexo. A comparação é difícil. Não existe nada no sexo comparável a uma gema deixada intacta em cima do arroz depois que a clara foi comida, esperando o momento de prazer supremo quando o garfo romperá a fina membrana que a separa do êxtase e ela se desmanchará, sim, se desmanchará, e o líquido quente e viscoso escorrerá e se espalhará pelo arroz como as gazelas douradas entre os lírios de Gileade nos cantares de Salomão, sim, e você levará o arroz à boca e o saboreará até o último grão molhado, sim, e depois ainda limpará o prato com pão. Ou existe e eu é que tenho andado na turma errada. O fato é que quero ser ressarcido de todos os ovos fritos que não comi nestes anos de medo inútil. E os ovos mexidos, e os ovos quentes, e as omeletes babadas, e os toucinhos do céu, e, meu Deus, os fios de ovos. Os fios de ovos que não comi para não morrer dariam várias voltas no globo. Quem os trará de volta? E pensar que cheguei a experimentar ovo artificial, uma pálida paródia de ovo que, esta sim, deve ter me roubado algumas horas de vida a cada garfada infeliz. Ovo frito na manteiga! O rendado marrom das bordas tostadas da clara, o amarelo provençal da gema... Eu sei, eu sei. Manteiga ainda não foi liberada. Mas é só uma questão de tempo.

A Ciência em si (Gilberto Gil e Arnaldo Antunes)


Se toda coincidência
Tende a que se entenda
E toda lenda
Quer chegar aqui
A ciência não se aprende
A ciência apreende
A ciência em si
Se toda estrela cadente
Cai pra fazer sentido
E todo mito
Quer ter carne aqui
A ciência não se ensina
A ciência insemina
A ciência em si
Se o que pode ver, ouvir, pegar, medir, pesar
Do avião a jato ao jaboti
Desperta o que ainda não, não se pôde pensar
Do sono eterno ao eterno devir
Como a órbita da Terra abraça o vácuo devagar
Para alcançar o que já estava aqui
Se a crença quer se materializar
Tanto quanto a experiência quer se abstrair
A ciência não avança
A ciência alcança
A ciência em si.

Máquina Breve (Cecília Meireles)


O pequeno vaga-lume
com sua verde lanterna,
que passava pela sombra
inquietando a flor e a treva
— meteoro da noite, humilde,
dos horizontes da relva;
o pequeno vaga-lume,
queimada a sua lanterna,
jaz carbonizado e triste
e qualquer brisa o carrega:
mortalha de exíguas franjas
que foi seu corpo de festa.
Parecia uma esmeralda
e é um ponto negro na pedra.
Foi luz alada, pequena
estrela em rápida seta.
Quebrou-se a máquina breve
na precipitada queda.
E o maior sábio do mundo
sabe que não a conserta.