terça-feira, 28 de maio de 2013

Literatura e leitura em aulas de ciências: alguns exemplares

Devo confessar que o tema leitura me fascina. E o mais interessante nisso tudo é que eu me considero uma pessoa "preguiçosa" para ler, que lê muito menos do que deveria. Acredito que meus colegas professores compartilham em parte dessa sensação uma vez que somos interpelados todo o tempo pelas mais diversas cobranças inerentes à nossa profissão.
Acredito que todos somos professores de leitura e de escrita mesmo sendo professores de ciências (até mesmo eu, professora universitária). E tenho buscado as mais diferentes formas textuais que possam não apenas me ajudar a ensinar algum conceito científico mas, sobretudo, estimular a criticidade dos alunos.
Recomendo a leitura da crônica de Paulo Mendes Campos, intitulada "Automóvel: Sociedade Anônima" (presente na coleção Para Gostar de Ler - Crônicas, vol. 4), na qual encontrei um potencial crítico considerável a ser explorado sobre as relações de consumo em nossa sociedade, tangenciando questões tecnológicas. Devido à sua extensão, não reproduzo aqui.
Há ainda a crônica do "Ovo", de Luis Fernando Verissimo, que nos permite tecer considerações sobre o próprio funcionamento da Ciência e a divulgação científica. (Esta segue abaixo.)
Sem falar nas letras de músicas, algumas de Gilberto Gil, que a mim fascinam pela simplicidade e ao mesmo tempo um refinamento poético incrível. (Selecionei apenas uma do Gil, por conta de espaço.)
E existem também os clássicos. Destes, escolhi uma autora que me encanta: Cecília Meireles.
Espero que a poesia inspire nosso próximos dias e nossas ações docentes. 


"Ovo" (Luis Fernando Verissimo)

Agora essa. Descobriram que ovo, afinal, não faz mal. Durante anos, nos aterrorizaram. Ovos eram bombas de colesterol. Não eram apenas desaconselháveis, eram mortais. Você podia calcular em dias o tempo de vida perdido cada vez que comia uma gema.

Cardíacos deviam desviar o olhar se um ovo fosse servido num prato vizinho: ver ovo fazia mal. E agora estão dizendo que foi tudo um engano, o ovo é inofensivo. O ovo é incapaz de matar uma mosca.

Sei não, mas me devem algum tipo de indenização. Não se renuncia a pouca coisa quando se renuncia ao ovo frito. Dizem que a única coisa melhor do que ovo frito é sexo. A comparação é difícil. Não existe nada no sexo comparável a uma gema deixada intacta em cima do arroz depois que a clara foi comida, esperando o momento de prazer supremo quando o garfo romperá a fina membrana que a separa do êxtase e ela se desmanchará, sim, se desmanchará, e o líquido quente e viscoso escorrerá e se espalhará pelo arroz como as gazelas douradas entre os lírios de Gileade nos cantares de Salomão, sim, e você levará o arroz à boca e o saboreará até o último grão molhado, sim, e depois ainda limpará o prato com pão. Ou existe e eu é que tenho andado na turma errada. O fato é que quero ser ressarcido de todos os ovos fritos que não comi nestes anos de medo inútil. E os ovos mexidos, e os ovos quentes, e as omeletes babadas, e os toucinhos do céu, e, meu Deus, os fios de ovos. Os fios de ovos que não comi para não morrer dariam várias voltas no globo. Quem os trará de volta? E pensar que cheguei a experimentar ovo artificial, uma pálida paródia de ovo que, esta sim, deve ter me roubado algumas horas de vida a cada garfada infeliz. Ovo frito na manteiga! O rendado marrom das bordas tostadas da clara, o amarelo provençal da gema... Eu sei, eu sei. Manteiga ainda não foi liberada. Mas é só uma questão de tempo.

A Ciência em si (Gilberto Gil e Arnaldo Antunes)


Se toda coincidência
Tende a que se entenda
E toda lenda
Quer chegar aqui
A ciência não se aprende
A ciência apreende
A ciência em si
Se toda estrela cadente
Cai pra fazer sentido
E todo mito
Quer ter carne aqui
A ciência não se ensina
A ciência insemina
A ciência em si
Se o que pode ver, ouvir, pegar, medir, pesar
Do avião a jato ao jaboti
Desperta o que ainda não, não se pôde pensar
Do sono eterno ao eterno devir
Como a órbita da Terra abraça o vácuo devagar
Para alcançar o que já estava aqui
Se a crença quer se materializar
Tanto quanto a experiência quer se abstrair
A ciência não avança
A ciência alcança
A ciência em si.

Máquina Breve (Cecília Meireles)


O pequeno vaga-lume
com sua verde lanterna,
que passava pela sombra
inquietando a flor e a treva
— meteoro da noite, humilde,
dos horizontes da relva;
o pequeno vaga-lume,
queimada a sua lanterna,
jaz carbonizado e triste
e qualquer brisa o carrega:
mortalha de exíguas franjas
que foi seu corpo de festa.
Parecia uma esmeralda
e é um ponto negro na pedra.
Foi luz alada, pequena
estrela em rápida seta.
Quebrou-se a máquina breve
na precipitada queda.
E o maior sábio do mundo
sabe que não a conserta.
  

terça-feira, 21 de maio de 2013

Das sutilezas da vida à (des)esperança na educação

Dizem que são nas sutilezas que se revelam os grandes aprendizados da vida. Na verdade, nem sei mesmo se alguém já disse isso mas é algo que me parece cada vez mais verossímil pelos relatos de alguns colegas professores e pela minha própria experiência no magistério.
Em uma rede social onde tenho um perfil, vira e mexe, tem algum professor contando um "caso" especial de algum aluno ou vivenciado em alguma turma ou escola. Sempre paro para ler todos porque sempre fico buscando nas sutilezas, nas entrelinhas (como uma pretensa analista de discurso que sou), um algo a mais, um sentimento velado e, até mesmo, o viver pelo olhar do outro. 
Sinto falta de estar em sala de aula com adolescentes. Eu gostava muito de dar aulas no ensino fundamental e ver meus e minhas alunos/as se descobrindo, descobrindo o mundo. Era o que eu mais gostava no magistério na educação básica. É a tal "boniteza" que Paulo Freire falava. 
Então, quando leio os relatos de meus colegas professores atuantes nas escolas é como se eu pudesse vivenciar novamente um cotidiano que não é mais o meu. E, devo confessar, que faço isso não por mero saudosismo mas também por medo. Medo de me isolar no universo acadêmico, nas pesquisas sobre a escola que acabam perdendo a escola de vista (às vezes nunca nem sequer a tiveram em vista de fato), de viver a ilusão dos "alimentadores de currículo Lattes". 
A escola é uma instituição que me fascina, por vários motivos. Não pretendo listá-los todos porém devo assumir um, talvez o que mais mexe comigo: acredito, ainda, que a escola tem poder de transformar a sociedade. E quando digo escola, no fundo estou me referindo aos professores, estes mesmos que eu contribuo para sua formação em minhas aulas na universidade. Por isso, acredito na formação de professores e encontrei ali o meu nicho e meu cenário de atuação. Mas tenho percebido que os professores que estão na escola são apenas um componente do sistema e, como disse um colega que muito admiro, se o sistema como um todo não mudar continuaremos agindo isoladamente.
Esse post que está se conformando como um depoimento tem muito a ver com uma situação que vivi recentemente e que muito me impactou. De forma bastante resumida tratou-se de participar de uma conversa de duas professoras aposentadas das redes municipal e estadual do RJ completamente desiludidas com a educação. O que uma delas disse, jamais me esquecerei: "eu já tive pena, eu já me importei, agora eu não sinto mais nada". (Entendam que não estou criticando em qualquer ponto a fala desta professora.)
A realidade que tira a esperança, que nos imobiliza, que quer que não nos importemos mais com um outro ser humano está aí. É a realidade da nossa sociedade. Mas eu descobri que eu ainda não estou pronta para desistir, nem quero sentir pena, fazer caridade. Eu - e sei que muito colegas professores também - quero justiça, igualdade social. E nem que seja por meio das minhas "aulinhas" (termo que já ouvi de professores universitários), das minhas pesquisas que "apenas" servem para encher currículo e comprar um equipamento
e das minhas ideias (que são muitas, por sinal) manterei-me firme no meu lugar de professora. 

segunda-feira, 13 de maio de 2013

O "deboche" nas redações do ENEM


Hoje ouvia na rádio o jornalista Ricardo Boechat comentar um dos novos "critérios" a ser levado em consideração na correção das redações do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), a saber: o candidato que usar o "deboche" como estilo de escrita será punido. Assim como o jornalista eu fiquei perplexa, afinal, o que se espera de um aluno recém-egresso da educação básica? Não é o mínimo de senso crítico sobre as mais variadas questões presentes em nossa sociedade? E uma das formas de se expressar uma crítica não é o deboche? O que temem os responsáveis pelas provas do ENEM e, em última instância, o próprio Governo já que é ele quem organiza o exame? Terem suas políticas públicas questionadas?!
Tanto falamos em nossas aulas em cursos de formação de professores sobre a necessidade fundamental de sermos docentes que exploram as relações entre Ciência e Sociedade, de não desvincularmos o ensino dos conteúdos científicos das questões educacionais mais amplas as quais, por serem sociais por natureza, ajudam a manter ou a romper com a estrutura em que vivemos. São tantos os professores que estão empenhados em suas aulas a não apenas preparar seus alunos para conseguirem uma vaga nas universidades mas para se tornarem "mentes pensantes", pessoas que buscarão a igualdade social, cultural, econômica para todos e o próprio Ministério da Educação quer "regular" formas de expressão que questionam a sociedade, mesmo que seja via deboche?
Aliás, o que é isso que eles estão denominando "deboche"?
Eu, enquanto professora, pesquisadora e formadora de professores que se preocupa com questões relacionadas à leitura e à escrita mesmo em aulas de ciências fico chocada ao tomar conhecimento de que esse tipo de intolerância está sendo propagada em um exame nacional de educação. Nossos alunos saem do ensino médio escrevendo mal? Muitos saem mesmo! E este não deveria ser o foco do Ministério da Educação? Não entendam que eu estou defendendo menor rigorosidade na correção das redações pois não há como esperar que, após ter entrado na universidade, o candidato - agora aluno universitário - seja alfabetizado e aprenda a interpretar e produzir textos. É a velha questão do "vai empurrando o aluno para a série seguinte, aprovando e deixa ele se queimar lá na frente".
Fico com a sensação de que novamente o "eixo central" da educação está sendo deslocado e que está se fazendo cada vez mais necessário nos perguntarmos sobre o que queremos da Educação nesse país. Onde está o nosso Plano Nacional de Educação até hoje?
O incômodo do deboche é que somente quem percebe uma situação passível de crítica/contradição é capaz de se mostrar alfabetizado politicamente. Provavelmente, nossos governantes não desejam isso. 

sábado, 4 de maio de 2013

O que ensinar nas aulas de ciências? Um "bom" argumento para o currículo mínimo escolar.

Esta semana, em aulas de diferentes disciplinas na Biologia, surgiu uma questão que parece se constituir relevante para alguns licenciandos: a (suposta) importância da existência de um currículo comum nacional.
Ao falarmos de abordagem conceitual ou temática, seleção dos conteúdos de ensino, uso de metodologias baseadas ou não na perspectiva Freiriana, eles expuseram o conflito entre a opção pela valorização da realidade do aluno e a necessidade deste mesmo aluno "acompanhar" o ensino oferecido em diferentes escolas do país.
É aquela velha discussão: será que é justo selecionar conteúdos que dizem respeito ao entorno social imediato do aluno em detrimentos dos conteúdos "universais" já estabelecidos e consolidados no currículo escolar? Será que um aluno da escola pública, ao ser educado dentro dessa filosofia mais contextualizada ou problematizadora não sairia atrás na corrida pelas vagas no ENEM quando em competição com os alunos (treinados) pelas escolas particulares? Será que, ao regionalizar demais o currículo escolar, o aluno não enfrentará dificuldades quando for transferido de escola em seu próprio estado ou para outra região do país?
A ideia do currículo mínimo nacional - que vem se tornando cada vez mais reduzido, sobretudo em nível estadual e municipal - abarca a ideologia de que uma educação justa é a "Educação para todos". Mas o que está por trás desse slogan da "Educação para todos"? É oferecer o acesso à escola pública (de que qualidade?), aos conteúdos de ensino e às oportunidades de socialização que o ambiente escolar proporcionaria? Pesquisadores do campo do currículo, dentro de uma vertente crítica, ajudam-nos a refletir sobre essas questões. Afinal, o currículo não é/está assim por acaso. Ele foi construído, selecionado, elaborado por pessoas que tinham determinados interesses e objetivos (não apenas educacionais). Ele é fruto de disputa de poder, de status, de espaço-tempo na escola.
O slogan da "Educação para todos" acaba justificando/reforçando a ideia de que já que queremos que todos sejam educados façamos isso da forma mais homogênea possível. Logo, todos os alunos que cursam o sétimo ano do ensino fundamental devem, obrigatoriamente, aprender conteúdos relacionados ao corpo humano nas aulas de ciências em todo o país. Mas quais conceitos devem ser ensinados-aprendidos sobre o corpo humano? Anatomia, fisiologia, genética? Esse corpo é o mesmo daquele de um aluno de uma escola no sertão nordestino e de outra no centro da cidade de São Paulo? Há como ensinar da mesma forma esses conceitos?
O que acho mais relevante destacar nesse debate (que se estende amplamente e que não teria como ser esgotado aqui) é que, ao adotar uma metodologia na qual a seleção dos conteúdos não é tomada como "natural" e, sim, fruto de um processo de problematização e de tomada de conhecimento da realidade social da comunidade escolar, o professor (ou a equipe docente) está deslocando o foco central da questão. Ele passa a refletir não apenas sobre a relevância de determinados conteúdos curriculares mas, além disso, ele se questiona sobre a finalidade do ensino de ciências.
Sou ampla defensora do acesso ao conhecimento científico por todos os alunos de todas as escolas brasileiras. Mas não acredito que devemos educar (cientificamente) todos da mesma maneira. O aluno da escola pública tem que ter seu direito garantido ao acesso ao conhecimento mais elaborado possível sim, não só para competir em condições iguais com o aluno da rede particular no vestibular (pensando aqui dentro desse paradigma de que o vestibular é o objetivo último do ensino formal), mas sobretudo para ter a oportunidade de também refletir sobre seu entorno social, sobre as condições (desiguais) sociais, econômicas, culturais que ele sente dia a dia na sua pele.
Acho que meus alunos, futuros professores, ainda irão conviver com esse conflito de forma mais real quando estiverem atuando profissionalmente. Alguns, provavelmente, se ajustarão ao sistema, adotarão o currículo mínimo tal qual lhe foi imposto. Outros, não.