Qual a diferença entre “ensino de ciências” e
“educação em ciências”? Será que existe mesmo uma distinção entre tais
denominações? Essas perguntas me perseguem desde a graduação. Tenho um amigo
com quem cursei a Prática de Ensino, Jorge Nascimento, que uma vez disse: “eu
não gosto dessa dicotomia entre o pessoal da educação em e do ensino de”.
Essa frase marcou. E devo dizer que até hoje quando escrevo um desses dois
termos em qualquer um dos meus textos eu paro para pensar se estou atribuindo o
significado correto a eles.
Hoje,
anos após ter ouvido tal comentário de meu amigo, pedi a ele que falasse mais
um pouco sobre o assunto. Leiam o que ele escreveu:
“Sim, me lembro disso!
(...) se não me engano era algo na linha de: o pessoal do "Ensino de"
tinha mais apego (seria melhor dizer interesse?) à prática da didática, à
experimentação (por exemplo) em sala de métodos de ensino e ao aprender
fazendo, se é que não fica ofensivo dizer isto. Já o povo da "Educação
em" teorizava mais e, de certa forma, se afastava do problema (e às vezes
da prática na sala de aula ou no campo), talvez para compreendê-lo de maneira
menos emocionada e desapegada dos claros limites impostos pela prática. Na
verdade, na época, eu acho que me incomodava que o pessoal que era mais sala de
aula e projetos (no laboratório, no campo) e o pessoal que tentava entender a
educação e o ensino à luz das teorias tinham umas brigas muito bobas. Não sei
se na época eu tinha esta visão mas me parecia que a complementariedade entre
as visões era meio óbvia mas as pessoas preferiam defender seus nichos se
opondo e não atuando em colaboração. Daí que os mais acadêmicos pareciam, aos
olhos dos "práticos", uns alienados e estes viam os outros como
improvisadores sem conteúdo teórico (como se não soubessem o que estavam
fazendo por não ter a base teórica sólida inclusive pra saber quais teorias
estavam fazendo dialogar ao executar uma determinada prática). Então eu acabei
representando pra mim isto da forma que eu via quando lia os trabalhos (ex: em
EPEBs[1]
e assemelhados) e conversava com as pessoas. E no final das contas eu acho que
o moleque que estava ali num determinado contexto social, histórico e mesmo
conjuntural, perdia pois seus mestres atacavam os inimigos errados ao tentar
refletir para melhorar o resultado líquido da educação no chão! (...)”.
E meu amigo ainda fala um
pouco de sua experiência na educação ambiental, porém selecionei este fragmento
porque ele traz (brilhantemente e de forma explícita) algo que me tem feito
pensar recentemente sobre as contribuições que minhas pesquisas (teóricas ou
empíricas) na área de educação em
ciências podem ter de fato para a melhoria do ensino de ciências e da
própria formação e trabalho docente. Qual o impacto que as pesquisas e as
discussões que se dão no âmbito acadêmico têm na sala de aula? Porque a
impressão que eu tenho quando converso com professores é que eles estão
preocupados com demandas concretas de sua atividade, entre elas: péssimas
condições de trabalho, alunos desinteressados, colegas desestimulados, mudanças
cíclicas nas políticas das secretarias de educação, avaliações extremamente
exigentes (e muitas vezes descabidas) por parte do governo, necessidade de
cumprimento dos conteúdos programáticos, salários vergonhosos e nenhum incentivo
à complementação de sua formação e prosseguimento dos estudos já que não existe
uma política de plano de carreira. (Este último ponto está relacionado ao que
discuti no post “Por que o professor que estuda mais sai da escola?”)
Desta
forma, volto meu olhar para as discussões que tenho no grupo de pesquisa ou
para aquelas que presencio em eventos científicos e fico com a impressão de
que, em diversas situações, nós (pesquisadores) teorizamos demais, elucubramos
sobre os mais diferentes aspectos da “educação em ciências” e acabamos nos
distanciando das tais demandas que enumerei acima com as quais o professor tem
que lidar na escola (onde o “ensino de ciências” se concretiza). É claro que
existem pesquisadores atentos a tudo isso e que buscam incorporar essas
questões a suas teorizações. Porém, acredito que essa dicotomia entre aquilo o
que é “pensado” sobre o ensino de ciências e aquilo que se “efetiva” na sala de
aula de ciências é algo que deve estar constantemente sob vigilância daqueles
que realizam pesquisas sistemáticas na área.
O
que eu acho importante destacar é que temos que reconhecer (efetivamente) que
há produção de conhecimentos não apenas nos centros acadêmicos mas também na
escola[2].
Essa questão da diferença
entre o que é uma pesquisa “teórica” ou “prática” parece não ser tão
problemática em outros campos do conhecimento como é nas Ciências Humanas. Nas
Ciências Naturais (falando aqui da minha área disciplinar de origem) existe uma
distinção que se não é óbvia (do ponto de vista epistemológico) é, pelo menos,
estabelecida (e até certo ponto desejada) pelos cientistas entre ciência dura
(“hard”) e ciência aplicada. E embora exista uma disputa por status, poder e recursos entre
cientistas das duas vertentes o sentido de pesquisa aplicada não tem sido
pejorativo uma vez que esta tem dado contribuições essenciais para o
desenvolvimento de medicamentos, vacinas, curas de doenças, entre outros. O que
temos observado nas Ciências Naturais é que essa distinção muitas vezes não faz
sentido pois pesquisas aplicadas geram novos conhecimentos e pesquisas “hard”
podem vir a ter aplicações práticas. Ou seja, o que acaba sendo importante, em
última instância, é o acúmulo de conhecimentos. Não tenho a menor pretensão de
traçar um paralelo entre Ciências Naturais e Ciências Humanas apenas estou
enfatizando que no caso específico da educação em ciências
poderíamos/deveríamos reconhecer e vivenciar o caráter aplicado que as
pesquisas da área têm (ou deveriam ter?)[3];[4].
[1] EPEB:
Encontro Perspectivas do Ensino de Biologia. Este encontro teve sua primeira
edição em 1982 e a última em 2006 sendo sempre realizado e organizado pela
Faculdade de Educação da USP. Após a criação da Sociedade Brasileira de Ensino
de Biologia (SBEnBio), em 1997, e sua concretização passaram a ser realizados
os ENEBIOs e EREBIOs (encontros nacionais e regionais de ensino de biologia,
respectivamente). Consulte o site http://www.sbenbio.org.br/.
[2] Sugiro a
leitura do livro: Lopes, Alice R. C. Conhecimento
escolar: ciência e cotidiano. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.
[3] Uma
discussão sobre esse tema é feita por: Delizoicov, Demétrio. Pesquisa em ensino
de ciências como ciências humanas aplicadas. In: Nardi, Roberto (Org.). A pesquisa em ensino de ciências no Brasil:
alguns recortes. São Paulo: Escrituras Editora, 2007.
[4] Sobre
possíveis diálogos entre distintas áreas da ciência (exatas e humanas) veja a
reportagem na Revista Ciência Hoje em: http://cienciahoje.uol.com.br/noticias/2012/10/dialogo-necessario.
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