“É preciso ousar, no sentido pleno desta palavra, para falar em amor sem temer ser chamado de piegas, de meloso, de a-científico, senão de anti-científico. É preciso ousar para dizer, cientificamente e não bla-bla-blantemente, que estudamos, aprendemos, ensinamos, conhecemos com o nosso corpo inteiro. Com os sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos, com as dúvidas, com a paixão e também com a razão crítica. Jamais com, esta apenas. É preciso ousar para jamais dicotomizar o cognitivo do emocional. É preciso ousar para ficar ou permanecer ensinando por longo tempo nas condições que conhecemos, mal pagos, desrespeitados e resistindo ao risco de cair vencidos pelo cinismo. É preciso ousar, aprender a ousar, para dizer não à burocratização da mente a que nos expomos diariamente. É preciso ousar para continuar quando às vezes se pode deixar de fazê-la, com vantagens materiais” (Paulo Freire) [1].
Sou uma profunda
admiradora de Paulo Freire. Ele foi, na minha humilde opinião, um filósofo no
sentido mais completo e bonito da palavra. Ao mesmo tempo, eu o invejo. Como
pôde um simples ser humano ter conseguido ver o mundo (e não apenas a educação)
desse jeito tão sutil e cheio de esperança? Porque, falemos a verdade, quando
estamos em sala de aula deparados com uma turma cheia de crianças ou adolescentes
desafiadores, coisa rara de se sentir é esperança.
Voltando ao Paulo Freire.
Tive contato, pela primeira vez, com uma de suas obras na disciplina de
Filosofia da Educação. Para quem não me conhece, fiz licenciatura em Ciências
Biológicas na UFRJ. Devo ter cursado essa disciplina mais ou menos no meio do
curso, ou seja, nos idos de 1998. O professor que ministrava a disciplina era
um pouco mal visto no meio acadêmico mas eu só fui conhecer o verdadeiro motivo
quando me tornei professora substituta dessa mesma Faculdade de Educação.
Estranho isso, quando somos alunos estamos tão imersos no nosso papel social de
“aluno” que não nos damos conta da complexidade (em todos os sentidos) da academia e, até mesmo, do próprio sistema educacional. Enfim, esse
professor (sendo “bom” ou não) teve o mérito de me apresentar ao Paulo Freire.
Como era uma disciplina curta, de um semestre apenas de duração (não me lembro
a carga horária), obviamente que não seria um estudo aprofundado. Então, lemos
um resumo da obra de cada um dos filósofos da educação selecionados e ele
propôs que o trabalho final fosse uma leitura – incluindo comentários – mais
aprofundada de um deles. Quem pensou que eu escolhi o Freire se enganou. Acho
que por causa dessa enorme “moda” em torno do construtivismo eu optei por
estudar o John Dewey[2]
(retomei a leitura deste autor anos depois e reconheci sua relevante
contribuição para a educação em ciências). No entanto, após o término da
disciplina, por curiosidade comprei o livro Pedagogia
da Autonomia[3].
Mudou minha vida. Não, não é exagero. Mudou mesmo. Aquelas “regrinhas” que ele
colocava naquele pequeno livro eram desafiadoras e encantadoras. E como era
difícil ler aquilo... Ele usava palavras, termos, que eu nunca tinha ouvido,
depois percebi que ele era bom em neologismos. Fiquei encantada com o texto mas
se eu disser que ele significou tudo o que alguns anos depois ele viria
significar para minha constituição como professora, naquela primeira leitura,
eu estaria mentindo. Anos depois, em meu doutorado, redescobri Paulo Freire (graças ao Prof. Demétrio Delizoicov) e então estava um pouco mais madura para estudá-lo de fato.
A beleza da leitura está
aí. (A leitura é um tema que me encanta.) Quando lemos um texto construímos
sentidos que, provavelmente, não serão os mesmos daqui a algum tempo quando teremos
novamente contato com aquele texto ou quando simplesmente nos recordamos dele. Quem
diz isso é a Eni Orlandi, referência na Análise do Discurso[4].
Poder ler, reler, descobrir e redescobrir o que Freire diz em seus livros foi
algo que eu aprendi com o tempo. O mesmo acontecia (acontece) comigo com letras de músicas. Há sempre novos sentidos vindo à tona, outras emoções
aflorando.
Tem muita gente que diz
que Paulo Freire era idealista, utópico. E aí eu volto à citação que dá início
a este post. Se não fôssemos capazes de ousar, não apenas na educação mas na
vida, o que seria da cultura humana? Indo mais além: o que seria até mesmo da
Ciência? Sem ousadia, sem curiosidade, sem sonhos, sem perguntas nós morremos
ou, simplesmente, deixamos de viver intensamente.
Se não fosse a “utopia” de
Freire estaríamos até hoje acreditando (e como tem gente que ainda acredita...)
que alfabetizar é ensinar o “Eva viu a uva”. Tanto se fala atualmente em
letramento e esse filósofo foi mais do que precursor ao dizer
que alfabetizar ou aprender a palavra é saber fazer uma leitura do mundo. Nada mais libertador
do que possuir a capacidade de ler criticamente o mundo social no qual estamos
inseridos e, consequentemente, buscarmos a transformação frente às injustiças
que aí estão. Isso é educar. E isso é muito bonito!
[1] Freire,
Paulo. Professora sim, tia não. Cartas a
quem ousa ensinar. São Paulo: Editora Olho d’Água, 1997.
[2] Dewey, John. Democracia e Educação. 3. ed. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.
Dewey,
John. Vida e Educação. 3. ed. São Paulo: Edições Melhoramentos,
1952.
[3] Freire,
Paulo. Pedagogia da Autonomia. 30.
ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
[4] Orlandi, Eni. Discurso
e leitura. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1993.
Orlandi, Eni. A leitura e os leitores. Campinas:
Pontes Editores, 1998.